6.12.11

finita e inacabada



disseram sobre o homem: que continuaria revoltado enquanto não aceitasse essa sua condição, de ser finito e inacabado. sobre acabar a revolta não sei, mas não duvido de que seja essa mesma nossa máxima: um com-fim sem-fim, e talvez leve toda sua duração - até lá, o fim - para aceitá-lo.

como todas as outras coisas que aprendemos muitas vezes na vida (sem necessariamente desaprendê-las), essa é uma que volta a me visitar agora. na mesma semana, uma semana repentina em mais de quatro anos, em que começo a repensar tanto do que venho guardando, nessa mesma semana ouço um dos meus questionar o mesmo. ele busca o novo, um pouco mais de novidade na sua vida, o que implica em deixar pra trás o velho, que sempre nos serviu. bem quando eu começava a criar coragem pro mesmo, não é engraçado? mas é claro (quantas vezes vamos repetir os clichês na vida?), para abrir espaço pro novo devemos nos despedir do velho, sempre o soube. nossa velha casa, onde vivi desde quando tenho lembranças.

foi naquela casa que buscava caules de mamoeiro pra soltar bolinhas de sabão, por aquele quintal onde passaram tantos cachorros. era seu muro que pulava pra ir brincar na rua, na sua garagem andava de patins, na sua varanda jogava água e sabão em pó para escorregar até quando os joelhos aguentassem. lá me deitava na rede, de olho nas copas das árvores, quando as agonias adolescentes me afligiam, acompanhada de meu walkman e fitas com músicas cortadas. nos seus sofás amarelos montava cabanas, e anos mais tarde cochilava neles depois da escola. daquela cozinha já saíram muito mais de mil cheiros, suas panelas foram tocadas por muitas mãos - a especialidade do meu avô era sua massa de torta, a téia fritava sonhos quando eu desejava sonhos no fim da tarde, minha irmã estourava pipoca (sempre salgava demais), fazia brigadeiro, e íamos assistir televisão, enquanto o sol se punha.

à noite eram muitos os barulhos estranhos, as tábuas rangiam, e do primeiro pro segundo andar era uma aventura. íamos correndo em direção aos interruptores, que traziam luz e segurança pra gente. as escadas eram descidas a pé, correndo atrasada pra escola, ou de colchão quando minha mãe, que condenava a brincadeira, estava no trabalho. eram descidas com pressa e sono nas manhãs de natal, atraídas pelo cheiro das panquecas feitas na cozinha. mamãe ainda vestia seu robe, vermelho vivo, já com cara de quem estava acordada a horas, tomando seu café.

lá a luz é imensa - a casa é cheia de vidros. seus chãos de madeira, paredes de vidro, e paisagem de trepadeiras a beirar a sala foram cenário de muitos dos momentos daquela família que por muito tempo foi aquela família, e parecia sempre o ser. se aquilo era uma família, eu tinha uma, e duraria pra sempre.


exceto que não. estaria sempre mudando, claro, mas isso eu só começaria a aprender depois. meu pai sairia de casa, depois meu irmão, minha irmã também, levando a pequena carolina com ela. ficaríamos eu e minha mãe, e depois só eu. aquela casa veria, antes do que esperávamos, até carro de funerária.


muitos foram visitas frequentes, alguns moradores, e aquela cozinha chegou a ter cheiro de vinho e latas vazias por toda a sua bancada. aquele chão viu muita dança, os sofás ouviram muitas confissões, sentiram muitas bundas o ocuparem por horas a fio desfiando verdades sobre a vida, e receberam também casais apaixonados. o gramado que foi dos amigos depois abrigou um minhocário, e muitas mãos-biólogas para afagar seu solo. nele caminharam filhos daqueles que viu criança, olha que bonito. ele já perdeu as contas de quantas vezes secou e esverdeou, acompanhando o ciclo pelo qual passa todo ano brasília.





o chão, as janelas, a vista e as bugingangas ainda estão lá, mas nós não. virou então cenário de fantasmas, possui tudo que é necessário para criar o inexistente. e até quando o inexistente reinará sobre o possível?

é palco de uma vida inteira que não é mais. como é difícil, sempre, me despedir dela. se a sensação é de luto, é acertada: sua perda é como uma morte, chorar o leite derramado, ou evaporado, sublimado, que não voltará. não voltará e não tem problema - se hoje ouço o condutor anunciar a próxima parada do metrô e me encanto por conquistar um lugar, com seu chão, seu céu, e seu mar, inteiros novos pra mim, posso ficar tranquila que, se o que já foi, já foi, o que virá, virá. e não vai acabar, até o fim.

3 comments:

DAUGHTER NATURE said...

Muitas lembranças, muita cor, muitos cheiros, muito amor, muitas horas... quanta coisa uma casa pode abrigar, não é?

Amei! Amo vc!

Murilo Reis said...

Mas é só uma casa, não é? O importante está em nossa memória, nas fotografias, no nosso coração, não está?

Em seu belo texto, podemos ver que não.

Abraço.

coresquenãoseionome said...

assim você acaba comigo, linda.

essa casa que foi meu segundo lar por tanto tempo e muito antes de ser meu lar, de fato.

muitas lembranças aqui tb. muitas! ♥