23.11.11

Perdendo o asco e o saco

Estava nesse momento vendo novamente o projeto de um fotógrafo inglês residente em Nova Iorque sobre seus dias com seu pai. É um relato fotográfico e escrito de algumas pequenas verdades que o circundaram sobre seus dias na companhia, e logo após a perda, de seu pai. Acho bonito e tocante, mas dentre tantas coisas às quais nos remetem, o relato dele me remeteu, hoje, ao asco. Ao nojo do velho mesmo, e suas secreções, excreções, pêlos compridos no nariz, aquele cheiro de remédio, o hálito cetônico resultado da inanição e o cheiro de morte. Foi em uma de suas fotos, em que abraçava com ternura seu pai, que reparei no tamanho dos pêlos do nariz de seu velho, o tanto de rugas na pele, e fantasiei as mil manias do velhinho que o filho provavelmente teve que aguentar (como a calça preferida, velha e manchada, a qual seria impossível retirar para lavar).

O asco entra no saco das verdades proibidas. Um rápido desvio - me parece atroz manter em segredo tanto que nos circunda vez ou outra na vida. Nos faz, quando sentidores, ETs em casa, estranhos em sua própria terra. E esse saco, das coisas guardadas, se rompe em alguns momentos da vida, acredito eu. Conversando com uma amiga esses dias sobre nascimento, falamos sobre um tanto dos não-ditos sobre nascer, e principalmente sobre virar mãe. Confessei não poder compartilhar, e apenas imaginar, esse universo, mas toda a conversa me remetia às minhas experiências com a morte. Pedi desculpas pela comparação, tampouco gosto de soar orgulhosa demais das minhas experiências de perda, mas são algumas experiências, entre tantas, capazes de - olha o clichê - mudar sua visão da vida. Essa amiga então disse que, segundo o budismo, são algo como quatro grandes experiências na vida de alguém que promovem essa mudança, uma delas nascer, outra morrer. Talvez envelhecer fosse outra; ela adicionaria ser mãe, eu, perder alguém. É aqui que me perco um pouco, desculpem, apesar de sentir algum sentido nisso tudo misturado, esse saco e esse asco.

Vi a foto do cara, abraçando carinhosamente seu velho pai. E pensei no nojo de velhos. Lembrei do seu Manel, o vizinho dos meus avós no interior do Goiás. Meu vô convidava o seu Manel pra assistir aos leilões de gado na tv rural em sua casa, e minha vó, já esperta, colocava um tapetinho embaixo dos pés do velho vizinho. É que seu Manel tinha uma mania de esfregar um pé no outro, e assim liberar a pele morta de seus pés cansados. Vivia de havaianas, sentado em frente à sua casa papeando com quem passasse, quando não estava com meu avô. Sempre podia espiar seus pés grandes, calejados, descascados e faltando algumas unhas - eles estavam em exposição constante para os curiosos. E sua falta de pudor em esfregá-los um no outro no chão da minha avó me chocava. É desse asco que estou falando. Da Ms. Jeanne, sogra da minha tia, que após um derrame não havia muito mais que podia fazer sozinha, inclusive cagar. Era tarefa de quem a acompanhava, sempre, ir com ela ao banheiro e, se necessário, ajudá-la a se limpar. Como se fosse um bumbum de bebê.

Muitos anos depois minha mãe teve que retirar toda sua mama esquerda. Um dia estava em casa e ela me chamou, pediu que a ajudasse a trocar as ataduras. Vi seu tórax reto, costurado, inchado dos líquidos que não mais eram drenados pelos gânglios linfáticos que foram também removidos, e dali em diante foram algumas trocas de ataduras, algumas idas à medica para retirar o líquido que se acumulava, com direito a vista privilegiada de todos os procedimentos. E então quando minha mãe precisava de mim para cortar suas unhas do pé, que nunca foi bonito e agora era velho, ou quando meu avô, muito doente no hospital, já exalava seu cheiro de morte, eu ainda queria abraçá-lo, queria ajudá-la. Estourei o saco, vi meu asco, e limpei a bosta.

Foto: Philip Toledano

No comments: