19.6.11

Marcha das Vadias e Nós

Lia soltando a voz na Marcha das Vadias em Brasília.

Com esse movimento todo da Marcha das Vadias, ando lendo, falando e ouvindo muito sobre feminismo (e agora escrevendo). O engraçado é eu nunca ter escrito antes sobre isso - talvez fosse uma mistura, sim, de "acho que isso não precisa mais ser dito, tantas outras falam tão melhor que eu" (crença que foi pro ralo frente a tanta baboseira machista que ando ouvindo) com o medo de falar eu mesma uma asneira machista. É que, vejam bem, eu não fui criada feminista. O feminismo tem sido uma conquista recente na minha vida, com a descoberta de outros privilégios e discriminações sobre os quais falo melhor outra hora. Acredito que seja assim também para tantas outras mulheres. Lendo o que a Lola escreveu sobre como toda mulher tem uma história de horror, fiquei pensando nas minhas, e no que elas significaram na época e significam agora, e quis compartilhar.



Nasci mulher, bem por acaso. Cheia de outros privilégios, me acostumei com eles, e tinha o direito de reclamar de bem pouco, já que tinha saúde, dinheiro, casa, comida e ainda era branquinha, loirinha e de olhos verdes. Já cedo, sem saber, fui sofrendo algumas agressões às minhas vontades e direitos - ainda acho que poderia ser uma ótima jogadora de futebol não fosse o óbvio direito dos meninos à quadra da escola. A minha participação nas partidas durante o recreio ocorriam somente por bondade dos mesmos, que ainda nos faziam o (des)favor de alterar as regras na nossa presença. Poderíamos chutar suas canelas, segurar suas camisas, e inclusive deixar a bola sair fora - como mais ganharíamos? Mas nós meninas sabíamos do que gostávamos: futebol. Então a escola surgiu com uma solução para os problemas de acesso à quadra: nós ganhamos um passe livre e, se ainda insistíssemos nessa baboseira de querer jogar bola, poderíamos sair da escola e caminhar até a quadra comunitária mais próxima. Perderíamos uns bons minutos de jogo (e como eram valiosos!), mas já aprendemos desde cedo a não contrariar os garotos, e agradecer a chance que nos era dada.

Cresci mais um pouco, eu e minha pouca destreza no futebol (perceba a mágoa), e comecei a sair na noite brasiliense, ainda nova. Nós gostávamos de dançar, fosse o que fosse, inclusive (ou principalmente, por um bom período) axé. Aprendíamos as coreografias à tarde em casa e íamos, felizes da vida, para o Batom na Cueca na AABB, dançar na frente do palco. Fui me acostumando a receber cheiros no cangote no caminho pro banheiro, puxões pela cintura e passadas de mão na bunda. Pensei em ficar revoltada (porra, o cangote é meu!), mas aquilo era tão normal. Era o preço que eu pagava por querer sair à noite e dançar. Então fui me acostumando com a falta de controle sobre meu corpo. E se eu respondesse, ainda era chamada de chata, feia, mal-amada, todas essas baboseiras que ainda ouvimos quando nos revoltamos com Rafinha Bastos e etc, etc, etc. Era obrigada a responder, sempre, o argumento de que mulher brasiliense era chata e se fazia de difícil quando devolvia com um tabefe uma agressão a meu corpo (quando devolvia, porque a gente também deveria temer, sim, receber três tabefes de volta se reagisse).

Como não haveria de ser diferente, comecei a achar isso tudo normal. Me arrumava pra sair, me sentindo cada vez mais bonita com o passar dos anos (que maravilha), mas ciente de que quanto mais bonita eu aparentasse, maior teria que ser a dose de paciência, e força física, para lidar com mãos e bocas de outros tentando invadir meu corpo (que merda). Até que um dia, em uma festa qualquer dessas, me vi frente a um corredor de homens, mais velhos que eu (que ainda estava na escola), bombados e sem camisa. Espertos, formavam esses corredores em festas cheias sabendo que, para nós, não haveria escapatória - eu tinha que passar ali. Era a última da fila entre minhas amigas e, já acostumadas com isso, passamos de cabeça baixa e marchando rápido, prontas para nos proteger dos certeiros ataques. O último bombadão, um coração tatuado no peito, me segurou pela mão. Pedi que me soltasse, e, ao invés de atender a meu pedido, seus amigos se juntaram a ele e me puxaram ainda mais forte para dentro daquele corredor do horror, onde pegariam onde quisessem no meu corpo. Minhas amigas logo viram e vieram socorrer, foram necessárias todas elas para me puxar de volta. Saímos e a festa continuou; aliás, nunca foi interrompida. Cheguei em casa, triste, machucada, e indignada. Mas o mais triste dessa história toda é que tanta gente ouve isso e pensa e daí? Um causo tão corriqueiro... E se perde a força da verdade absoluta desse, e tantos outros casos de agressão física, verbal, emocional às mulheres: é uma agressão. Fui agredida e ainda não podia reclamar.

Há bem pouco tempo fui perseguida na rua em Nova Iorque por um homem por quase uma hora. Eu entrava em restaurantes, lojas, tentava despistar, ele me aguardava na esquina, pronto para fazer sabe-se lá o quê. Como bem li em algum dos textos da Lola, como é diferente temer um assalto e temer um estupro. Também em Nova Iorque, recebemos boas porções de machismo com um side dish de xenofobia. Já ouvimos brazilian bitches, brazilian whores, e fucking brazilians de algumas bocas. E, repito, se nos importássemos demais com tamanha babaquice, as chatas éramos nós.

Aprendemos a lidar com tantas caras tortas quando falávamos que não, não vou dar pra você. Perdi minha virgindade (ou melhor, transei pela primeira vez, porque minha castidade não vale mais que minha atividade sexual) mais tarde que a maioria, e por anos, quando ficava com alguém, tinha que falar: olha, eu não vou dar pra você. E já tive que ver muita cara feia e ouvir muita merda, me mostrando, aos poucos, que minha sexualidade e meu corpo eram mais deles que meus, como se eu estivesse tirando um direito deles. Aprendemos a atrelar sexo a culpa - posso me falar mil vezes que sou livre, mas enquanto todos e todas não compactuarem com essa minha liberdade, ela permanece no mundo das ideias. Minha mãe sempre permitiu que eu dormisse com quem quisesse em casa, na casa dela. Não queria saber se era namorado, se íamos nos casar, não queria que me mantivesse virgem até um príncipe me deflorar. Me dava liberdade, mas sabia que não era o suficiente. Quando avisava a ela que levaria alguém para casa, ela somente perguntava: ele te respeita?

Aí cresce toda uma geração de mulheres com medo de se vestir como bem quiser, com medo de gozar, com vergonha de seus corpos, e ninguém sabe o por quê. Mulheres que aprendem que seus orgasmos são menos importantes, seus desejos secundários, seus direitos restritos. Aprendem a temer ir e vir. E as mulheres se unem, se movimentam, marcham não por serem arruaceiras, por quererem se vestir de vadias, ou para irem contra o instinto sexual do homem sobre o qual, pobre coitado, ele não tem nenhum controle. Elas se unem porque aquilo diz respeito à vida de nós mesmas, também em solidariedade com outras, mas por nós: pelo nosso direito de gozar, de nos vestirmos como bem entendermos, de transitarmos com segurança e de dar pra quem a gente quiser.

E tem gente que ainda acha ruim.

3 comments:

Larissa said...

JUUU!!! INCRIVEL!!!!!

Amei esse texto. Brigada- thank you thank you thank you- por compartilhar suas historias. Como isso eh importante, nao sei nem dizer- fico sem palavras.

Me identifico com todas suas experiencias.

Sou feminista, com MUITO orgulho.

muitos beijos minha querida! Belissimo texto! Vou share com todo mundo.

liapadilha said...

Perfeito!!!

Cada palavra uma verdade, uma liberdade. Pude vivenciar um tantão disso daí com vc, né? E só posso dizer que me sinto contemplada e fico felicíssima com sua reflexão.

Um beijo emocionado,
na minha amiga Juliana Feminista.

marina said...

que texto bonito, ju.
me emociona ver uma pessoa como você, tão consciente, falando sobre um assunto importante como esse de um jeito sereno e espontâneo.
esse é, sem dúvida, o feminismo mais tocante e transformador que pode existir. :)

um beijo.