Queria estar na fazenda, com todos os primos ao redor do fogão de lenha assando milho verde no espeto. Isso acontecia somente depois da série de banhos - o banheiro era um só, e a família grande. Ao final do dia, a galinha depenada esperava o fogão se aquecer, e com ele se aqueceria a água do banho. Banho quente e chão frio, de cimento queimado amarelo. Todos usávamos sabonete fofo e neutrox 3 em 1. Galinhada servida na cozinha, as tias correndo de lá pra cá, e de cá pra lá, e a mesa imensa azul-bebê de onde se via o pomar. Uma cachaça pra quem trabalhou duro o dia inteiro, e era hora de cama para os mais novos. Antes, uma ida ao gerador com o papai significava o fim da energia. A via láctea inteira se acendia ao desligar do gerador, e o caminho pelo cascalho de volta até a casa era iluminado por ela. O lampião a gás que parecia uma casinha e tinha uma camisinha acesa dentro assoprava o começo da noite. Me ninava com o sopro do lampião e os gritos de truco!, e me encantava com as sementes de olho de cabra. Na casa não havia forro no teto; estávamos todos separados por paredes e portas mas muito unidos pelos sons transportados pelas telhas vermelhas - o boa noite, desejávamos já da cama, para a casa inteira. Às vezes ficava no degrau das escadas observando e escutando os mais velhos. Deitava debaixo da asa de minha mãe, que lia mais um romance à luz de velas, e fantasiava que o "toin toin toin" do colchão de molas era o som de comunidades inteiras de bichos trabalhando enquanto dormíamos. Dormia com meu nariz encostado em sua camisola para sentir seu cheiro. Os morcegos novos vez ou outra despencavam em nossas pernas durante a noite. Mamãe me dizia que tudo bem, eram apenas morcegos-crianças aprendendo a voar.
O gado mugia cedo, acordávamos ao canto do fogo apagou e íamos ao curral com um copo de alumínio com toddy tomar achocolatado direto da teta da vaca. O dia era imenso, e entre lazer e trabalho passávamos quase todo o tempo atarefados. Papai cuidava dos negócios, eu colava nas tias para ir atrás de ninhos e catar ovos no pomar, nos primos pra nadar na represa ou na mamãe para entrar no mato e procurar sementes de sucupira branca. Já sabia desde cedo que aquele cerrado era precioso - as sementes eram ouro para nós. A gente ainda catava feijão na peneira de palha, pisava no café que torrava na frente de casa e lavava a casa com mangueira e sabão. Na hora do almoço era um corre-corre ao preparar as marmitas pra levar até a lavoura, com algumas garrafas de café. Eu sempre quis uma marmita daquelas pra mim. Às vezes minha tia pegava o trator e eu ia junto, em pé. Uma ida ao pomar com uma faca na mão terminava em horas passadas debaixo do imenso pé de jaca, comendo tudo menos a jaca. Sempre era hora de comer, e agora era pão de queijo e rosca, com café. A janela da cozinha emoldurava o terreiro, e aquele cafézinho era acompanhado pela paz das galinhas ciscando. Um filme com um tempo diferente. E eu no mesmo ritmo delas, a paz da roça era compartilhada por todos - horta, galinhas e nós. O cansaço era oportuno, e chegava na hora de tirar a poeira seca das nossas roupas e entrar de novo no banho. Mais um dia se foi, e era em dias como esse que carregávamos o carro de verduras, queijo e leite e da estrada víamos o pôr-do-Sol. Deixávamos a roça lá, e sabíamos que estaria intacta a nos esperar. De longe aparecia Brasília, toda iluminada, bonita.
Brincando na frente da casa.
Tio Porfírio cortando melancia pra criançada, na imensa mesa azul-bebê.
Vô Jorge.
Na estrada de terra onde aprendi a dirigir.
6 comments:
juju, q texto lindo! Seus textos são sempre emocionantes!
Lembranças de fazenda é tão bom, né? Eu nunca gostei de leite, ainda mais da vaca (forteeeee)!!!! Mas a mila ocupava o meu lugar nisso, hehe! Mas eu adorava o curral... uma das coisas q eu mais lembro é de correr no milharal e depois nadar na piscina de milho, era muito bom! Acompanhar o parto dos porquinhos, demorava horas!!! E moer cana na hora e comer morango no pé, tão bom!!!!
Bom fds, minha querida!
Eu tive uma infância de casa na chácara. Ela tinha gosto de tangerina azeda no pé e manga verde.
Eu gostava de pescar girinos com potes de manteiga claybom vazios, na piscina.
No fim do dia tinha pipoca.
A nossa vida é tão nossa, e tão bonita. Só hoje eu entendo aquela de "aproveitar a infância".
E eu tenho saudade da minha.
Seu texto me fez lembrar de mil coisas, de maneira quase sinestésica.
É lindo de ler....
Adoro acompanhar vocÊ.
:)
Ju, lindíssimo texto! Guardo as minhas lembranças da fazenda com muito carinho e vejo cada vez mais como tivemos sorte em vivenciar, por tantos anos, um estilo de vida simples e roceiro, mesmo tendo sido criadas na "cidade grande". A simplicidade do povo da roça me encanta, me emociona. Penso frequentemente sobre o quanto a vida que levo atualmente é complicada: tantos papeis, tantas senhas, tantas manobras, tantas preocupações, tantas decisões... Assunto rende...
Mas fiquei com vontade de registrar aqui as minhas lembranças da fazenda, além das que você tão lindamente citou:
- o cheirosíssimo pé de jambo;
- a canoa que certa vez laboriasamente construímos para navegar em uma das represas, mas afundou na primeira tentativa, pois foi feita com bananeiras;
- o banho que certa vez eu e Pedro tomamos em uma represa que havia sido "adubada" com esterco de porco para alimentar os peixes (que ainda não moravam lá), e quando papai e mamãe viram mandaram que a gente saísse e tomássemos banho correndo (olha os vermes, meninos);
- os pedidos da vó (como a gente trabalhava!), principalmente o de catar "bombril de pobre" para esfregar com força a mesa de madeira todos os dias depois do almoço;
- o galão de leite onde jogávamos o coagulante que vinha em um vidrinho azul royal, e em seguida fazíamos mil queijos que ficavam alinhados nas tábuas, aguardando virarem biscoito frito de queijo..
- e o tacho de cobre com doces borbulhantes? Doce de manga "de vez", o meu favorito.
Bom, são muitas outras ricas lembranças. Sou uma pessoa de sorte!
Eu dava tudo por um doce de manga agora!
O post mais lindo que ja li!!!
Amei, Ju!!! Muito, muito! Me fez lembrar da minha infância - que tbm foi muito feliz! - e pensar que a única coisa que me importa agora é que a Gigi seja feliz! Só isso, nada mais! Amo vc! Beijos
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