17.11.14

"Você é corajosa?"

Tive uma experiência ruim com a medicina, mais uma. Uma pequena, comparada às violências que ouvimos falar por aí. Tinha um nódulo na cabeça, no couro cabeludo, coisa simples. Mas estava crescendo, me incomodava, e há anos queria tirar. Me aproveitei que agora tenho plano de saúde e marquei a consulta com um cirurgião plástico, indicado por uma dermatologista. Sabia que era um procedimento simples, pensei que não teria problemas em fazer com um médico do plano, que não fosse da minha confiança. O que poderia dar errado? Já dá pra saber que estava enganada, né? A gente ouve falar das atrocidades cometidas por médicos, mas a ideia deles como profissionais da saúde, que privilegiam o cuidado e nos quais podemos confiar, é forte demais para ser vencida assim, numa tacada só.

Fui à primeira consulta, e ele me ofereceu duas opções: poderia fazer o procedimento ali mesmo ou em uma casa de saúde. Perguntei qual seria a diferença entre os dois, e ouvi como resposta: "depende, você é corajosa?". Eu, que sou, fiquei com medo. Imaginei litros de sangue jorrando da minha cabeça, em um consultório em Ipanema sem banco de sangue por perto, e minha causa mortis: era só um cisto na cabeça. Me perguntou onde eu morava, que era mais perto da casa de saúde, melhor fazer lá, onde ainda teria um quartinho para ficar depois me recompondo, antes de voltar pra casa. Aceitei. Na mesma consulta, insistiu para que eu tirasse um sinal do rosto que eu não queria tirar. Fui incisiva, e mesmo assim ele colocou no pedido para o plano de saúde os dois procedimentos.

No dia, comecei a estranhar o tamanho da preparação para um procedimento tão simples. Foi uma internação. Tive que fazer jejum, chegar horas mais cedo, ter uma acompanhante. Tudo isso porque estava fazendo na casa de saúde, no centro cirúrgico, onde tomaria anestesia local e um sedativo, além de antibióticos, por estar no centro cirúrgico. Perguntei se o sedativo era realmente necessário, na brincadeira o anestesista me convenceu que era tranquilo, melhor tomar. Eu estava vendo graça no circo todo. Antes do procedimento, o médico foi conversar comigo. Repeti que não gostaria de tirar o sinal no meu rosto, ao que ele responde: "e esse outro no nariz?". Me convenceu, mais uma vez.

Após o procedimento, sua secretária me visita no quarto, me entregando a papelada, incluindo dois recibos para o pagamento de médicos: um do anestesista, cobrando mais caro do que o meu plano iria me reembolsar (mesmo eu tendo repetido a ela que não poderia pagar mais) e outro, de uma outra médica auxiliar. Não me lembrava dela. Estava meio sedada, então não sei se perguntei e nem qual resposta obtive.

Foi só no dia seguinte, tomando banho, que comecei a juntar as peças: me lembrava de ter visto no recibo dessa médica auxiliar seu sobrenome, igual ao do cirurgião. Devia ser sua filha. O anestesista era um amigo. E só então fui me lembrando do convencimento para o procedimento na casa de saúde.

Num primeiro momento, achei absurda sua tentativa de se aproveitar do plano de saúde, provavelmente ganhando mais por um procedimento simples, e incluindo família e amigos no pacote. Só depois percebi que meu corpo estava inscrito nessa situação também. Tomei antibióticos sem necessidade, eu que tanto evito tomá-los, prezando pela saúde da minha microbiota. Qualquer pessoa que tenha tido contato com a área de saúde sabe dos riscos do excesso de antibióticos, que são necessários em muitos casos, mas não nesse. Era um procedimento quase dermatológico. Assim como a sedação, a internação, e tanto mais. O meu corpo, ali, era secundário a todo o maquinário de extorsão.

Na medicina, meu corpo é secundário. Procedimentos são preferidos a outros por interesses outros, que não minha saúde. É uma violação mínima perto daquelas que sofrem mulheres em trabalho de parto, por exemplo. Mas parte do mesmo princípio: meu corpo serve a outros propósitos, inclusive quando são maléficos a mim. Que merda. Meu corpo é sua lavoura, nele colhe.




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