25.1.11

Pequenas carícias

Tudo que é, é fonte de carinho (ou ofensa). Li certa vez que a melhor coisa para o ser humano é atenção boa, depois atenção ruim e, em último lugar, indiferença. Que os outros sejam indiferentes a ti dói mais que um belo tapa na cara. Mas falava de atenção boa.
Aprendi a reconhecer alguns atos como carícias. Já disse antes, mas talvez a maneira mais repetida com que meu falecido vô Jorge dizia que me amava era me dando um belo maço de espinafre num saco de supermercado toda vez que o visitava. E eu ia visitar, tomava um chá de poejo da mesma horta do espinafre, comia um biscoito de queijo no qual a vó Dita insistia em botar erva-doce (ô trem ruim), e a gente proseava um pouquinho. Eu assistia uma missa na Rede Vida com o velho, ou um leilão de gado gir, a gente botava os pés pra cima e o véi Jorge me oferecia um pouquinho de seu rapé. Espirrava até chegar de volta a Brasília, abastecida de carinho nessa dança que só depois fui ver era amor.
Nem sempre o amor da minha mãe era dos mais explícitos. Mamãe me deixou algumas cicatrizes (como todas), como umas respostas nem sempre acolhedoras aos meus nem-tão-bobos sofrimentos de outrora. Não era dada a reclamações e chororôs. Talvez fosse o sangue do norte, talvez fosse o pai militar, talvez fosse só difícil ser mãe de uma nacionalidade de uma filha de outra (sem nos esquecermos que somos todos estrangeiros em terras dos outros). Talvez ela apenas não me entendesse sempre, e eu apenas não a entendia. Não conseguia me ver chorar (deve doer a uma mãe o sofrimento de sua cria), mas adorava me ver rir. Não alugava decorações de mesas em casas de festas para meu aniversário, mas era capaz de passar meses comigo construindo bichos em papel-marché. Se eu pedisse algo de natal, era certo que não o receberia - o que vale é a surpresa e a intenção. Não pagava os poucos cruzeiros reais ao vendedor da feira pelo pára-quedista de saco de lixo, que voava sobre nosso passeio de fim de semana, mas usava os sacos de casa para tentar fazer o nosso. Então cresci sem a boneca da estrela, sem o vestido de festa junina. Mamãe não queria que eu fosse igual, quando era tudo que mais queria. Me mudou de escola porque aos 3 anos me faziam colorir coelhos xerocados, e eu tinha ataques quando o fazia fora das linhas. Gostava dos meus desenhos tortos. Queria, sempre, o que julgava ser o melhor pra mim.

De vestido listrado na festa do xadrez.

Assim como o papai, para quem não há mais quase nada na vida além de trabalho e roça. Trabalha durante a semana, vai pra roça todo fim de semana, e trabalho e roça foram sempre motivos de briga lá em casa. Papai queria que fôssemos os mais bem sucedidos no que escolhêssemos (mas um pontinho extra para quem fizesse de sua carreira a neurociência ou medicina, algo chique assim), e que nos apaixonássemos pela atividade de cuidar do galinheiro e chiqueiro como ele. A minha eu adolescente tinha outros planos, papai não os compreendia - é que ele nasceu e foi criado na roça, teve que cuidar de muito gado pra conseguir viver e estudar, e não entendia como esse povo da cidade grande era mimado. Deve ser difícil ser pai da roça de uma filha da cidade. E nos decepcionamos muito, até eu entender que aquelas casas da fazenda eram feitas de amor. Elas tinham quartos para os pais, quartos para os filhos, cavalos e represas, pra montar e se refrescar. Elas tinham tudo o que papai achava que precisávamos, era o papai dizendo que nos amava. Queria, sempre, o que julgava ser o melhor pra gente.
E hoje, quando vou visitá-lo, meu pai enche a geladeira de cerveja para que eu possa receber meus amigos, e faz questão de me buscar no aeroporto. Não me diz que me ama, não sabe fazê-lo. Mas acende a churrasqueira, abre uma gelada e me fala do pomar.





(Gosto do amor explícito hoje em dia, mas vez ou outra disfarço pequenas carícias por aí, na esperança de que meus amados as desembrulhem e se surpreendam com mais um dos vários jeitos de dizer eu te amo.)

8 comments:

marina said...

'cada um fala o afetês do seu jeito'.
;)

e ju fala afetês com a escrita, o sorriso de olhos verdes e essa presença tão perto/longe que deixa nosso coração quentinho, quentinho.

um beijo.

Cristina Caldas said...

Ju, linda maneira de dizer que toda maneira de amar vale a pena. Lindo texto seguido de lindo comentário da Marina (enchi meus olhos d'água, é isso mesmo)!
Beijo para as duas.

coresquenãoseionome said...

Também enchi meus olhos d'água e perdi as palavras para um comentário "melhor".

Lindo, Ju.

Larissa said...

"E nos decepcionamos muito, até eu entender que aquelas casas da fazenda eram feitas de amor."

lindo texto Ju, tambem to enxugando lagrimas...

muitos beijos.

. said...

choronas lindas! :)

Marol said...

lindo como sempre, juju! Coração fica derretido com os seus textos! bjo, meu bem!

Ruth said...

Palavras doces que me fizeram marejar os olhos...

Sâmella Caldas said...

Ah! O vô Jorge, pequeno e grande homem de olhos azuis, que deixou saudades e seus sinais de amor.

Linda forma de exemplificar esse sentimento que se esconde atrás de pequenas atitudes.

Parabéns pelo blog Ju.

Beijos da prima.